sábado, dezembro 29, 2007

Solta num tempo

cheguei fingindo ser esse móbile conurbado e repetitivo,
fingindo ser quem eu sou.
era clara e fatídicamente explicita.
não fazia rodeios, não mudava rotas, não desviava do predestinado.
espargia-me quando cansada.
desenhava suturas quando em chamas.
e só.
não me sobrava tempo.
minutos? nem os soube.
era recortando a pele que eu me encobria
com a pele da pele que vestia.
esgueirava-me numa dança niilista, musa do baile onde o disco arranhado repetia numa melancólica rouquidão:
'bravo pour le clown! ... bravo, bravo!'

terça-feira, outubro 16, 2007

Para colher flores em uma outra estação

Não vivi a juventude.
Vivi o passado; era para mim o futuro mais próximo.
Vivi o cedo, acordando o vazio, fazendo-o imenso.
Colhi camélias,
fiz delas objetos.
Criei-as desejos, meus desejos,
e desejos não murcham: dormem.
Estive todo esse tempo
vendo
ouvindo
tocando
cheirando
Esqueci de paladar.
Esqueci de comer camélias.
Assim, saberia seu passado.
Assim, viveria seu passado.
Assim, seria seu passado.
Camélias são jovens e vitais
e vivem o presente.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Tempo perdido

seguindo os segundos
reli os recados presos na geladeira.
o gelo não me abate, me congela.
estilhaça minhas lembranças em mil
segundos seguidos.

Fingindo ser cruel, meu bem.

O errado é querer ver com bons olhos quando se está no fundo do poço.
Eis onde estou: no fundo escuro e de olhos bem abertos.
Caí e me perdi. Perdi você, e foi bom.
Não pense que irei te procurar nos 'achados e perdidos' da minha vida.
Costumo esquecer as coisas lá, e elas não me fazem falta.
Você pode ainda ter a sorte de encontrar alguém que finja ser sua dona e te leve embora.
Aí eu sento e rio.
Não porque acho graça.
Mas porque rir é sempre o melhor remédio.

Singelo silêncio

Seria mesquinho e até vil acreditar que é facil ser só. Mal posicionada, corrijo-me: seria estúpido. Solidão é pra quem pode. Ser só é uma arte a qual não possuo padrão para encaixar-me. Solidão é um jardim. É repleto. Grama, flores e salgueiros. Onde encontram-se um cego, um surdo e um mudo, que conversam entre si. Despossuidores de sentidos, contendo a vida em suas liberdades de não serem o que são, têm a o destino nas mãos. Ser só é possuir-se. É deitar seu corpo em seu gozo, e acreditar que é inteiro. Sê inteiro, e sê só.

Ser Deus. Ser meu seguidor, meu sonho, minha madrugada.

sexta-feira, setembro 28, 2007

Devaneio Três e último

Pessoas não gostam de entendimento, isso torna os dias mais densos. Por isso me compreender torna-me rarefeita e suspensa no ar, Feito pluma. Mas se num momento acreditar que não me explico, já não sei se levanto vôo. Por isso a minha própria compreensão cabe a você. Pois a ti caberia o trabalho simples de me definir e se contentaria com o tão pouco da minha vida. Minhas contradições me bastam e me lembrarei delas até o sempre. Se tomá-las e aprendê-las, tornariam-se fáceis e pareceriam segredos desvendados. Sem precisar de mapas para alcança-los, ou bússola para definir seu rumo.

Devaneio Dois

O lado árduo e íngrime da minha personalidade não desejaria ir. Ele gosta daqui, permanecer é seu desejo.

Devaneio Hum

Queria saber fazer rimas fáceis e bobas, pra contentar alguns poucos e não ser esquecida tão facilmente. O que estou a dizer? É pela simplicidade que quero ser lembrada?
Quero estar em cada subterfúgio imaginário, não da minha vida, pois dela já estou farta, mas dentro de ti.

domingo, agosto 19, 2007

Roubo: artigo 157 do Código Penal

Se ao menos uma mochila me sobrasse
havia de a pôr nas costas
E desataria a seguir o mundo velho.
Mas não restou nem os nós com que prendia
o crime ao castigo.
Roubaram-me os pensamentos.
Pena leve. Dano imaterial de valor incalculável.
Roubaram-me os sentimentos.
Mas estes de nada valiam.
Roubaram-me ela.
E agora, João? São Cosme? Damião?
Santo Antônio dos amores perdidos, ou nunca achados
Prometo a ti reza, oração e até promessa
Se trouxer de volta, em sete dias
meu prelúdio.
Mas, se no fim só encontrares
marcas dela sobre o chão
toma nas mãos um instrumento
e desafina notas perdidas
numa orquestra de sentidos singular.

quinta-feira, junho 28, 2007

Coisas rimadas têm sentido

essa histeria cotidiana me cansa
de tal forma que chego a seguir as luzes,
placas, ruas tortas
só pra fugir da cidade que persigo.
carros me levam
mas carros me mordem?
não ligo
além do mais
corro
e fujo do que digo.
sapatos trocados, mal humor garantido.
alguém notaria?

sexta-feira, junho 15, 2007

Sinestesia

tom cor sabor
tudo em uma
compota
cubos de açúcar
doce feito algodão
doce feito à mão
como trançados de
palha da palmeira
palhaçada da vida
é lambuzar a boca
e manter os dedos limpos
a tarde inteira.

sábado, maio 19, 2007

Próprio Lar

Meu lugar
Não é aqui, nem lá.
É onde invento.
Resisto, existo
Calo e represento.
Mesmo que não represente
nada a outrem.
Mesmo que apresente
outrora a alguém.
Mesmo que me faça
presente. A ninguém.

domingo, abril 08, 2007

Pensamentos em vão

Escrever gasta
e cansa.
As idéias reluzem,
chamam,
voam e se escondem.
Passo dias e noites procurando-as
mas creio que pousaram
em algum galho oco
e estão a espera de quem as tome
e faça delas melhor proveito.

domingo, março 25, 2007

Pedaços de mim

Baço, braço, abraço.
Cabelo, joelho, cotovelo. Céu.
Mão, sorriso, pernas, começo.
Pulso, artérias, suor. Ar.
Som, cor, sabor, sentir.
Dar, dor, dedo. Dúvidas.
Pulmão, rim, risada.
Vértebra, nádegas, beijo. Asas.

segunda-feira, março 12, 2007

Veio agora de passagem e julgou-se dono da razão

Quando uma única palavra te define
e essa palavra é: Mudar.
Não mudança. Não muda.
Mas o verbo. Ação. Presente.
Aqui Agora e Já.
Esse jeito, aquele modo.
Quando nada disso agrada,
nada faz tanto sentido.
Quero respirar o novo.
Tocar com a ponta dos dedos a palavra transformação.
E pode estar fria.
Áspera. Branda.
Espetar e até doer.
Mas... por que não tentar?

quinta-feira, março 01, 2007

Aquele silêncio, velho conhecido.

Flores vermelhas que sangram. Pulsam.
Dor. Solidão. Falta de tempo ou de sorte?
Estar só. Ser só.
Eu e eu.
Sem ele, ela. Sem nós.
Cem nós?
Amarras de silêncio que me machucam o pulso.
Prendem a circulação e matam.
De vazio.
Sensação de nada possuir. De nada me possuir.
Sozinha num canto. Aresta. Ponta afiada.
Corte mais profundo que faca.
Faca que tenho nas mãos e enfio no peito.
E espero cair, gota a gota, a ausência, despejando litros de verdades que não aceito, mentiras que conto a mim mesma e desejos irreais.

domingo, fevereiro 25, 2007

Sobre tom

Só quando tudo se queima a gente percebe o quão cinza o dia se torna.
Antes, ardência e torridez.
Agora, restos de solidão.
A Deus, digo adeus.
Não sei se vou voltar. A cantar, dançar.
Pois meu dia perdeu a cor.
O que restou, única mistura
Branco-no-Preto.
Preto-no-Branco.
E o meu arco-íris nunca mais.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Invocação

Deus dos sem deuses
Deus do céu sem Deus
Deus dos ateus
Rogo a ti cem vezes
Responde quem és?
Serás Deus ou Deusa?
Que sexo terás?
Mostra teu dedo, tua bunda, tua face
Deus dos sem deuses

Chico César

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Desilusão, ilusão instantânea

E achávamos que viver num jogo de luzes incandescentes, incessantemente rodopiando no ar, era ter a plenitude, no sentido liberto de viver. Alcançamos o êxtase, o ápice da imoralidade, a qual não julgávamos vazia. Iludimo-nos. Aquele mundo não nos pertencia. Estava ali, bem próximo de ser sentido, de ser tocado. Mas era só o que podíamos ver. Nossa alma não foi capaz de ir além, transceder. E ficamos ali. De um jeito só nosso. Contemplando as maravilhas de um lugar onde nem os sonhos são puros. E descobrimos que o que nos faz melhor vai muito além de sentimentos tão vazios quanto amores falsos.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Mulher no Espelho

"EU. Convergência esmagadora. Os espelhos reluzem insuportáveis. Gelados. Olho mais do que olho. Olho no olho. Fundamento. Eu escrevo o que escrevo. EU.
Lá fora os relâmpagos descarregam seus clarões. Os trovões repentinos reagem ensurdecedores. Os espelhos se devolvem. A tempestade. Os espelhos abertos. A janela aberta. Um raio rápido e súbito risca o céu escuro. Os espelhos caem estilhaçados. No chão, pedaçoes de espelho molhados de sangue. Molhados de água da chuva. Uma breve chama se alteia. Olho um rosto inteiro num pedaço de espelho. Um rosto só. Não identifico o cheiro que o vento traz. Meu rosto Inteiro. Sou EU. O vento vem da tempestade muita. O vento. E se faz mais brando."
Helena Parente Cunha, Mulher no espelho, pág. 175