quarta-feira, dezembro 16, 2015

Sobre o nosso agir cotidiano e esse tal de instinto materno


Alessandra recebeu daquele jeito duro a notícia. Ali, sentada numa salinha sem portas, bem na entrada do centro obstétrico. Havia apenas uma cortina que nos separava do corredor, um local de passagem pelo qual todos que adentravam tinham trânsito livre. Sentada numa cadeira, posicionada ao lado de uma mesinha cheia de papéis espalhados, podia-se perceber a tensão que vibrava dos seus ombros. Tinha linhas de expressão bem marcadas, um rosto até doce, mas que naquele momento deixavam transparecer nada além de inquietude. Ela era bonita. Morena, seus cabelos lisos e bagunçados emolduravam seu rosto, mesmo estando presos em um rabo de cavalo feito de qualquer maneira. Parecia condizer com a pressa que carregava consigo. Ela me olhava, um jeito atroz, sem saber o que dizer. Em suas mãos, um papel grampeado, ainda incólume.

- O que você está sentindo? – perguntei, de forma meio automática.

Era quase sete da noite, em breve acabaria meu horário do plantão. Não havia sido eu quem preenchera sua ficha de admissão no serviço. Mas tinha na memória a lembrança de tê-la visto em pé, próxima à porta, ainda no início da tarde.
Ela me falou das dores que sentia há alguns dias, como pontadas, na barriga. E da sua saga, passando em diversos outros serviços de saúde antes de pousar ali na minha frente. Sentia dor e estava cansada. Queria saber por que diabos ninguém sanava essa sua queixa, nada parecia solucionar esse desatino.

Olhei a sua ficha bem rapidamente, vi que haviam solicitado exames, e aquele papel que carregava consigo provavelmente era o resultado que trazia.  Pedi a ela que me entregasse. Ao abrir, um laudo de ultrassonografia trazia a suspeita: uma provável gravidez ectópica. Ainda havia uma imagem pouco nítida, mas que podia representar também um feto se desenvolvendo em seu útero.

- É sua primeira gravidez, Alessandra?

Pude ver seu semblante se contrair, numa tentativa de conter as lágrimas que transbordavam de seus olhos negros.  Mas a lágrima correu, inevitável. Ela parecia não entender o que eu acabara de pronunciar, como se tivéssemos nos comunicando em dialetos distintos, numa terra de cegos, onde de nada vale à nossa linguagem dos corpos. Não pronunciou uma palavra.
Sem saber o que fazer, chamei uma médica pra me ajudar a decifrar aquele caso, e poder dar uma resposta àquela moça. A médica, assim como eu, encerraria seu plantão dentro de poucos minutos, e parecia apressada. De pé, recostada na maca daquele cubículo, olhou de forma contumaz praquele que deveria ser o sei lá qual número dos vários exames que havia visto naquele dia, e chamou outros colegas. Vieram mais dois, se reuniram defronte a paciente, que demonstrava nada entender. Ela os olhava com total incompreensão, vendo aquele mundo que não habitava, no qual imperava siglas e palavras estranhas, que em geral quando pronunciadas soam como uma maldição aos ouvidos de quem não domina esse dialeto cientificado. 

Eles analisavam as imagens e discutiam entre si, falando que poderia ser só uma gravidez fora do útero, mas que havia uma imagem sugestiva de algo se desenvolvendo também dentro dele. Um saco embrionário. Podia ser as duas coisas juntas, mas precisaria de mais exames para chegar a alguma conclusão. E o tratamento variava conforme esse sem numero de possibilidades diagnósticas iam aparecendo. Curetagem. Tratamento com metrotexato. Laparotomia. Prendi-me àquela discussão, era de fato um caso interessante a ser discutido e investigado, quando me dei conta de que havia mais alguém ali que demonstrava claramente não entender nada dos rumos que aquele debate sobre seus exames havia tomado.

Eu e Alessandra olhávamos, por motivos distintos, pr’aquela cena, sem saber como agir. Pedi então, numa tentativa de ajuda-la da forma como me cabia, que a médica explicasse tudo que estávamos falando, numa linguagem mais compreensível. Então ela o fez. Falou sobre a gravidez, que poderia ser só ectópica, dava pra tratar com medicamento. Mas se a dor piorasse, abrir a sua barriga era uma possibilidade real. Se tivesse um feto viável, eles tentariam preservá-lo. E , de forma unanime, achavam cauteloso interna-la já naquele momento.
Alessandra ergueu seu corpo, encostando a coluna no recosto da cadeira de plástico onde estava sentada há alguns minutos. Queria que ela dissesse alguma coisa, mas seu silêncio lancinante era o que de mais coeso ela poderia deixar transparecer sobre si. Eu aguardava, sem jeito, que ela me falasse algo, mas as palavras morreram em seus lábios.

- O que foi? – perguntei a ela – tem alguma dúvida sobre a explicação que a médica te deu, gostaria de ligar pra alguém?

Foi o que de mais elaborado consegui organizar em mente para dizer naquele momento.
Ela então me falou. 
Que não sabia estar grávida.
Que havia terminado o namoro há poucas semanas.
Que estava em um emprego novo.
E que seu chão havia se desfeito ali, bem na sua frente.