Alessandra recebeu daquele jeito
duro a notícia. Ali, sentada numa salinha sem portas, bem na entrada do centro
obstétrico. Havia apenas uma cortina que nos separava do corredor, um local de
passagem pelo qual todos que adentravam tinham trânsito livre. Sentada numa
cadeira, posicionada ao lado de uma mesinha cheia de papéis espalhados,
podia-se perceber a tensão que vibrava dos seus ombros. Tinha linhas de
expressão bem marcadas, um rosto até doce, mas que naquele momento deixavam
transparecer nada além de inquietude. Ela era bonita. Morena, seus cabelos
lisos e bagunçados emolduravam seu rosto, mesmo estando presos em um rabo de
cavalo feito de qualquer maneira. Parecia condizer com a pressa que carregava
consigo. Ela me olhava, um jeito atroz, sem saber o que dizer. Em suas mãos, um
papel grampeado, ainda incólume.
- O que você está sentindo? –
perguntei, de forma meio automática.
Era quase sete da noite, em breve
acabaria meu horário do plantão. Não havia sido eu quem preenchera sua ficha de
admissão no serviço. Mas tinha na memória a lembrança de tê-la visto em pé, próxima
à porta, ainda no início da tarde.
Ela me falou das dores que sentia
há alguns dias, como pontadas, na barriga. E da sua saga, passando em diversos
outros serviços de saúde antes de pousar ali na minha frente. Sentia dor e
estava cansada. Queria saber por que diabos ninguém sanava essa sua queixa,
nada parecia solucionar esse desatino.
Olhei a sua ficha bem
rapidamente, vi que haviam solicitado exames, e aquele papel que carregava
consigo provavelmente era o resultado que trazia. Pedi a ela que me entregasse. Ao abrir, um
laudo de ultrassonografia trazia a suspeita: uma provável gravidez ectópica.
Ainda havia uma imagem pouco nítida, mas que podia representar também um feto
se desenvolvendo em seu útero.
- É sua primeira gravidez,
Alessandra?
Pude ver seu semblante se
contrair, numa tentativa de conter as lágrimas que transbordavam de seus olhos
negros. Mas a lágrima correu,
inevitável. Ela parecia não entender o que eu
acabara de pronunciar, como se tivéssemos nos comunicando em dialetos
distintos, numa terra de cegos, onde de nada vale à nossa linguagem dos corpos.
Não pronunciou uma palavra.
Sem saber o que fazer, chamei uma
médica pra me ajudar a decifrar aquele caso, e poder dar uma resposta àquela
moça. A médica, assim como eu, encerraria seu plantão dentro de poucos minutos,
e parecia apressada. De pé, recostada na maca daquele cubículo, olhou de forma
contumaz praquele que deveria ser o sei lá qual número dos vários exames que havia
visto naquele dia, e chamou outros colegas. Vieram mais dois, se reuniram
defronte a paciente, que demonstrava nada entender. Ela os olhava com total
incompreensão, vendo aquele mundo que não habitava, no qual imperava siglas e
palavras estranhas, que em geral quando pronunciadas soam como uma maldição aos
ouvidos de quem não domina esse dialeto cientificado.
Eles analisavam as imagens e
discutiam entre si, falando que poderia ser só uma gravidez fora do útero, mas
que havia uma imagem sugestiva de algo se desenvolvendo também dentro dele. Um
saco embrionário. Podia ser as duas coisas juntas, mas precisaria de mais
exames para chegar a alguma conclusão. E o tratamento variava conforme esse sem
numero de possibilidades diagnósticas iam aparecendo. Curetagem. Tratamento com
metrotexato. Laparotomia. Prendi-me àquela discussão, era de fato um caso
interessante a ser discutido e investigado, quando me dei conta de que havia
mais alguém ali que demonstrava claramente não entender nada dos rumos que
aquele debate sobre seus exames havia tomado.
Eu e Alessandra olhávamos, por
motivos distintos, pr’aquela cena, sem saber como agir. Pedi então, numa
tentativa de ajuda-la da forma como me cabia, que a médica explicasse tudo que
estávamos falando, numa linguagem mais compreensível. Então ela o fez. Falou
sobre a gravidez, que poderia ser só ectópica, dava pra tratar com medicamento.
Mas se a dor piorasse, abrir a sua barriga era uma possibilidade real. Se
tivesse um feto viável, eles tentariam preservá-lo. E , de forma unanime,
achavam cauteloso interna-la já naquele momento.
Alessandra ergueu seu corpo,
encostando a coluna no recosto da cadeira de plástico onde estava sentada há
alguns minutos. Queria que ela dissesse alguma coisa, mas seu silêncio
lancinante era o que de mais coeso ela poderia deixar transparecer sobre si. Eu
aguardava, sem jeito, que ela me falasse algo, mas as palavras morreram em seus
lábios.
- O que foi? – perguntei a ela – tem
alguma dúvida sobre a explicação que a médica te deu, gostaria de ligar pra
alguém?
Foi o que de mais elaborado
consegui organizar em mente para dizer naquele momento.
Ela então me falou.
Que não sabia estar grávida.
Que havia terminado o namoro há
poucas semanas.
Que estava em um emprego novo.
E que seu chão havia se desfeito
ali, bem na sua frente.